
No térreo, só o radinho de pilha do porteiro ligado e o pequeno Maicon brincando de ajudar o pai no serviço quebravam o clima lúgubre daquela manhã de terça-feira. O menino correu, sorridente, e denunciou suas ‘férias’. Severino girou lentamente a respeitável barriga para corrigir o filho a tempo.
- É, dona Regina, os professô num tão querendo mais trabalhá por merreca não – disse abafado pelo bigode grisalho.
Nada de cartas na caixa. Foi quando ela se lembrou de ter visto algo estranho sobre Correios no periódico, e sentiu uma espécie de compaixão oficial por aquela gente parva e por si mesma.

Subiu no elevador com Sérgio, seu vizinho de baixo, e, em vinte e cinco segundos, não falou sobre o tempo que tinha virado, mas descobriu que o mestre de obras também não ia trabalhar e o porquê lhe soou familiar. Os anônimos que ajudavam a erguer o monumento de R$860 milhões para a festa em 2014 não recebiam os R$160 de cesta básica que queriam. Não tinham plano de saúde e ganhavam comida estragada na hora almoço.
À noite, logo após o jantar, Regina deitou junto ao marido e ele achou estranho. Consumida por um medo visceral e inexplicável, tratou de procurar conforto no ombro sempre firme do homem. Não achou ruim ver esporte na tv àquela altura. Achou que, se tudo estava saindo dos trilhos, se algo estava balançando, queria ver os robóticos atletas milionários promovendo algum espetáculo.

Não mais. No canal internacional, a poderosa liga de basquete americano estava estagnada. Ele achou estranho, mudou. Gostava das raquetes também, mas os tenistas não apareceram para exibir seus fortes patrocínios. Não toleravam mais as jornadas desumanas de jogos e as lesões seguidas e irreversíveis. O modelo esportivo ruíra.
Um olhou para o outro. Ele sabia que a Justiça Federal logo estaria na mesma e então poderia passar mais tempo em casa. Ela suspirava, aliviada, por fazer parte do mesmo mundo cretino que as estrelas internacionais. Entre os dois, harmonia. E ali, nos lábios do proletário, um beijinho de anarquia.
Bela crônica, muito bem escrita. Realmente tudo irá "explodir" logo logo. Abraço.
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